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GARGÂNTUA, DE FRANÇOIS RABELAIS – ENTRE O HOMEM MEDIEVAL E O MODERNO

 
Fábio Lucas Pierini (USP/FASAR)

 
            Inúmeros são os estudos sobre o livro de Rabelais contando a história da família dos gigantes franceses. Este trabalho tem por objetivo apresentar como, em meio à narrativa produzida no limiar entre Idade Média e Humanismo, François Rabelais demonstra que, assim como seu protagonista (o gigante Gargântua), a humanidade passava por um período de transição entre uma época em que a humanidade vivia sua infância e adolescência, cheia de jogos, brincadeiras, diversões e excessos de toda sorte, para sua maturidade, ocupada com a aplicação prática do conhecimento adquirido.

            Além disso, seu pai, Grandgousier, representa a idade da razão, o homem do conhecimento acumulado que viveu em tempos áureos e que quer transmitir a seus descendentes toda a riqueza material, intelectual e espiritual de sua juventude. Assim como a vida de Gargântua está para a transição entre a Idade Média para a Moderna, a de Grandgousier está para a Idade Antiga.

            Contrariamente ao que se pensa, a transição européia da Idade Média para a Moderna não se deu por ruptura brusca. Também diferentemente do que se afirma, a Idade Média não foi uma era de trevas e de ignorância em que apenas a religião (cristianismo católico) imperava como verdade absoluta. A esse preconceito se deve o fato de os renascentistas, em contato com os textos da Antigüidade Clássica greco-romana, acreditarem-se detentores de um saber que ficou oculto durante a Idade Média e que só agora proporcionaria um “renascimento” às Ciências e Artes. Nada mais errôneo visto que nem as Ciências, muito menos as Artes estagnaram-se durante a Era Medieval. Renascimento é, pois, um termo valorativo de época, atribuído pelos próprios artistas ao momento em que viviam.

            Outra questão interessante a se notar é que os humanistas, ainda que grandes propagadores do conhecimento científico, não eram anti-religião. Discordavam, obviamente, do papel político das entidades religiosas, pois acreditavam num Estado laico, ou seja, que garantisse aos seus cidadãos um conjunto de direitos e deveres independentemente de suas crenças ou descendência.

            É nesse contexto que François Rabelais escreve Gargântua, publicando-o entre 1534/1535. Porém é o texto da quinta edição, de 1542, no qual constam as últimas revisões do autor, que se considera o definitivo e sobre o qual se fazem as atuais edições. Algumas dessas alterações foram feitas em função de ataques por demais diretos a certas instituições francesas, tais como a Sorbonne, universidade cujo nome remonta à fundação do colégio fundado em 1253 por Robert de Sorbon, para ensinar a teologia aos estudantes pobres. Contudo, de acordo com a crítica de Rabelais, os sorbonagres (doravante sofistas) representavam o saber institucionalizado e inquestionável, o que ia totalmente na contramão do espírito humanista.

            Podendo a proposta humanista ser resumida a um relacionamento entre o homem e o mundo por meio do conhecimento, podemos admitir aí um princípio de racionalismo, mas não aquele que despontará no Iluminismo do século XVIII, baseado numa concepção racional das coisas, e sim numa visão razoável do homem e da vida. Em francês, o termo raisonnable se presta às duas concepções, o que pode nos trazer um pouco de confusão. Entretanto, para nosso estudo, usaremos o conceito de razoável para entender essa maneira não tão radical de avaliar os acontecimentos da vida, mas também de não aceitar dogmaticamente as “verdades” impostas por instituições, sejam elas Universidades (como a Sorbonne) ou a Igreja (no caso da Europa, a Católica).

            Logo no início da narrativa, o autor, para se proteger de quaisquer retaliações, declara sobre a história do gigante Gargântua:

 
Amigos leitores que ledes este livro,

Despojai-vos de toda paixão

E, lendo-o, não fiqueis escandalizados.

Ele não contém nem mal nem corrupção;

É verdade que aqui não encontrareis

Alguma perfeição, exceto se for para rir;

Outro assunto meu coração não pode escolher

Em vista da tristeza que vos agride e consome.

Mais vale tratar do riso que das lágrimas,

Porque rir é próprio do homem (RABELAIS, 1996, p. 45, minha tradução)

 
            Assim iniciando sua narrativa, ele deixa claro que se trata de uma obra cômica e que não deve ser considerada como acusação ou alusão aos atos de quem quer que seja. Mais do que isso, Rabelais justifica também a existência, dentro de sua narrativa, cenas da mais pura escatologia: sua intenção não é chocar nem escandalizar ou afrontar a moral e os bons costumes, mas sim fazer rir.

            No entanto, sabemos que o riso é uma das mais poderosas – senão a mais poderosa – arma de que vários artistas fizeram e ainda fazem uso para denunciar os males de nosso mundo. Além das cenas cheias de excessos de todo tipo (pesos e medidas extraordinários para tudo, desde a confecção de roupas e construção de casas, veículos, ferramentas, etc. até comilanças, bebedeiras) há ainda a inundação de Paris pela micção de Gargântua quando aí chega para fazer seus estudos e a memorável cena da “invenção do limpa-cu”. Porém sabemos hoje que essas passagens, ainda que bem elaboradas do ponto de vista literário, disfarçam aos olhos menos atentos, uma denúncia do comportamento arbitrário e autoritário dos reis e do clero da época.

            Mas Rabelais não apenas denuncia e destrói por meio do riso. Ele também propõe reformas ao comportamento do homem de sua época e conseqüentemente a construção de uma sociedade mais pacífica, justa e próspera.

            Antes de sua proposta, o autor cria em sua narrativa um universo de exageros e desperdício de energia e de recursos com a pura e simples diversão para ocupar o tempo. Conhecedor que era da cultura clássica greco-romana, Rabelais sabia que o declínio e ruína do Império Romano do Ocidente se deu justamente pelo desejo de acomodação diante da prosperidade vivida, refletindo-se em políticas como a pax romana, o pão e circo, o clientelismo, etc.

            De certa maneira, podemos alegar que Rabelais procura mostrar que, para se chegar à República proposta por Platão, é preciso formar o Príncipe, obra contemporânea de Nicolau Maquiavel publicada em 1532 (ou seja, poucos anos antes da primeira edição de Gargântua). E à maneira de Alexandre, o Grande, educado por Aristóteles, Gargântua é colocado sob os serviços de Ponocrates, nome inventado pelo autor e que em grego significa “o trabalhador”.

            Depois de mandado a Paris e colocado sob os cuidados de Ponocrates, Gargântua ganha aos poucos o gosto pelas Letras, Artes e Ciências e também pratica todos os esportes e atividades físicas e aprende a lidar com todo tipo de arma. Acaba por se tornar o homem ideal da literatura clássica: mente sã em corpo são.

            E é esse mesmo homem ideal quem volta para a casa de seu pai para defender seu reino da invasão liderada por um rei vizinho, Picrochole, que, segundo Grandgousier, só conseguiu se tornar um grande rei com sua ajuda. O rei vizinho não apenas é ingrato como também declara guerra a partir de um motivo extremamente desprezível: pastores do reino de Grandgousier tentam comprar fogaças de padeiros do reino de Picrochole e são humilhados. Irritados, brigam com os padeiros e levam suas fogaças, não sem antes pagar por elas. Os padeiros recorrem ao rei Picrochole, que, mal orientado por seus conselheiros, invade o reino de Grandgousier, pilhando, matando e destruindo tudo o que encontram pelo caminho.

            Grandgousier tenta de todas as maneiras resolver a questão de maneira diplomática, mas Picrochole, em função de seus conselheiros, recusa todas as ofertas do gigante e continua na ofensiva. Com a volta de Gargântua, Grandgousier reúne suas forças e aliados e eles revidam aos vizinhos, vencendo-os.

            Por fim, como gratidão ao irmão Jean, monge que lutou bravamente para defender seu mosteiro dos invasores e ainda integrou as forças de Grandgousier quando da batalha de reconquista, o rei gigante manda construir-lhe uma nova abadia na qual ele pudesse fundar uma nova ordem, a dos telemitas, ou seja daqueles que fazem o que querem – cujo lema às portas da própria abadia é “Faz o que queres”. Entretanto, não se trata de um princípio de libertinagem. Justifica-se Gargântua:

 

Porque as pessoas livres, bem nascidas, bem educadas, vivendo numa boa sociedade, têm, naturalmente, um instinto, uma direção chamada honra e que as leva sempre a agir virtuosamente e as afasta do vício. Quando uma vil e constrangedora sujeição as rebaixa e escraviza, elas canalizam esse nobre sentimento que as guiava livremente rumo à virtude para depor e quebrar o jugo da servidão, pois buscamos sempre o que é proibido e desejamos o que nos recusam (RABELAIS, 1996, p. 376-377, minha tradução).

 

            A narrativa termina com um enigma, uma previsão do futuro, na qual o mundo passaria por grandes tormentos, guerras fratricidas e revoltas contra os soberanos. Desastres naturais (enchentes, erupções vulcânicas) também são previstos como também pessoas de consciência que lutarão pela preservação da “máquina redonda”, ou seja, a Terra. Por fim, os eleitos sobreviverão e serão recompensados com valores de toda espécie.

 Conclusão

             O livro Gargântua, de Rabelais, pode ser lido como uma proposta para a educação do cidadão da nova era que se iniciava no século XVI. Isso fica claro na medida em que o protagonista vai abandonando, por meio dos estudos e do trabalho, sua postura infantil cujo único interesse era comer, beber e se divertir. Além disso é possível fazer um paralelo entre a sociedade européia ocidental medieval, que vivia fechada em seus feudos vivendo unicamente para si e sua transformação para a Idade Moderna, por meio do Humanismo e do Renascimento.

 
Bibliografia

 RABELAIS, F. Gargantua. Éditions du Seuil, Paris, 1996.

D’ORMESSON, J. Une autre histoire de la littérature française. Nil Éditions, Paris, 1997

BAKHTIN, M. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Hucitec, São Paulo, 2008.

 

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